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"A Política do Património", de Marc Guillaume


Marc Guillaume – A Política do Património (1980)

Campo das Letras, 2003

Tradução de Joana Caspurro

Apresentação de Vítor Oliveira Jorge

Doutorado em Economia, Mar Guillaume traz-nos um livro intrigante cuja leitura o coloca no capítulo das reflexões urgentes mas que a prática social remete já para o caixote das obras mais desprezadas de todos os tempos.

Segundo o autor, as sociedades modernas ocidentais vivem cada vez mais obcecadas pelo passado e pela conservação. Trata-se de uma prática consensual que, ao “tornar aceitável o desgaste do quotidiano”, acaba por condenar o próprio presente a uma morte antecipada.

“O passado conservado não é só o que existiu há muito tempo; é o conjunto de todos os elementos que são postos de parte porque deixaram de ser operatórios na sociedade presente. Da mesma maneira, o presente preservado hoje, porque se supõe ser o “passado” de amanhã, é composto por elementos que se julga que “vão passar”, ou seja, cessar em breve de ser operatórios”. (p.89)

Essa luta contra a perda da memória – em última análise, contra a morte – exerce-se bem no seio de um sistema produtivo que assenta na obsolescência, no desenraizamento e na destruição acelerados. Abatidos pelo fracasso resultante canalizamos as nossas parcas energias para a conservação “dos objectos materiais, excluindo o que é imaterial e necessariamente colectivo (a língua, a cultura, as instituições…).

Uma entidade externa que colectiviza objectos memoriais e os rituais que lhes estão associados perturba “o curso normal da memória e dos esquecimento, substituindo um passado vivido pelo imaginário de um passado eternizado. De tal modo que estes objectos, ao passarem a ser colectivos, perdem o essencial da sua eficácia simbólica: deixam de poder concluir o luto – particularmente quando eles próprios desaparecem. Carregados de significações novas, podem durar enquanto o Estado os proteger, porque este considera-os elementos úteis à sua própria semiótica. É por essa razão que o espaço social se satura de objectos comemorativos, de aniversários e de cerimónias, sem que a memória colectiva fique mais rica com isso.” (p.85)

Por entre um esforço insuficiente, cada vez mais individualista, de reencontrar nos destroços do passado alguma identidade surge a figura protectora do Estado, ao qual competirá “assegurar para si o monopólio da memória, reduzir a memória do todo à memória inscrita, conservada, autorizada”.

“Inquéritos sobre a toponímia das cidades mostram que as ruas do centro têm, na sua grande maioria, nomes de personalidades (notários, presidentes de câmara, médicos, doadores, vítimas de guerra) ligadas à cidade. Pelo contrário, as ruas das periferias, e em particular os loteamentos, têm sobretudo nomes sem memória (nomes de plantas, de países ou de cidades, etc.) Estas hierarquias culturais e espaciais, atentamente geridas por múltiplas instâncias, desenham uma topografia rigorosa cujos valores são explícitos; topografia que deixa também transparecer pela ausência, menos nitidamente, as artes populares, como a canção, ou as novas, como o cinema. Esta memória autorizada, querendo fazer do espaço e da cidade em particular um texto, semeado de citações, não se interessa pelas denotações mas somente pelas conotações que exprime.” (p.145)


Foto: Eduardo F., Museu D. Diogo de Sousa

Braga, 14.04.2008

Mas mesmo o Estado realimenta a lógica perversa do processo de conservação-destruição. Os dispositivos de conservação em meio aberto (como paisagens, bairros, práticas culturais) “só muito parcialmente podem suspender as contingências económicas, e a tendência pesada da destruição predomina. (…) Como está fora de questão, nos países industriais, pôr em causa a acumulação de capital e as contingências da competição internacional, a intervenção do Estado apenas pode ser secundária e compensatória, atenuando ou disfarçando os efeitos mais difíceis de suportar.” Para fornecer uma compensação para a degradação que ameaça uma paisagem urbana, um bairro é classificado como área protegida. Mas esta compensação, já parcial na sua origem, pode ser esvaziada da sua substância pelo facto de o dispositivo regulamentar das áreas protegidas produzir um espaço privilegiado de valorização económica: os imóveis são adquiridos pelos investidores, remodelados, alugados ou vendidos a preços muito mais elevados do que anteriormente à sua classificação: a operação salda-se pela partida das populações presentes e por uma desestruturação profunda do ambiente vital anterior. A conservação reduz-se neste caso a uma pura materialidade de fachada, que serve de suporte, graças a uma injecção de capital, a novas hierarquias do território e segregações sociais. O mecanismo em jogo neste exemplo é geral: num mundo submetido a uma destruição maciça, a conservação de alguns elementos isolados forçosamente acarretará a sua valorização económica. Quando um objecto vai para o museu, todos os objectos vizinhos são assim valorizados nos mercados de arte ou de antiguidades. Quando um espaço é protegido porque é visto como “antigo”, “tradicional” ou “natural”, adquire valor, tal como a sua vizinhança. E esta valorização faz quase sempre falhar profundamente o propósito visado – ou aparentemente visado – pela conservação.” (p.133)

Um livro pleno de actualidade. A ler urgentemente.


Boas leituras geográficas.


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