O ar morno e sufocante Penetrava pela janela Toda a estância balnear Esmagada pela quentura Parecia estar deserta Concentrados à beira mar Muitos corpos escaldados Estendidos uns sobre os outros Como nacos de vianda Nos balcões dos supermercados Mais um dia sem demanda Neste enfado
“Estância Balnear”, Mão Morta
Título: Alegoria do Património
Edição Original: L’Allégorie do Patrimoine (1982)
Autor: Françoise Choay
Tradução: Teresa Castro
Revisão: Pedro Bernardo
Edição: Junho de 2010
Editora: Edições 70
ISBN: 9789724412740
Paginação: 308 páginas
Neste livro, a autora começa por uma introdução aos conceitos de monumento e património ao longo da história para perceber a sua evolução e como este culto se tornou num dos princípios modeladores, não só das cidades, mas também das mentalidades e da agudização da economia capitalista.
Pelas diversas conquistas, reconquistas e abandonos dos territórios europeus ao longo dos séculos, os edifícios, em ruínas ou não, foram sendo “notados” pelos poderes (eclesiásticos, feudais, políticos…) ou por individualidades (intelectuais, artistas, antiquários (originalmente, aqueles que prezavam as coisas e os conhecimentos dos antigos) e, muito mais tarde, arquitectos e urbanistas). Tal significa que foram sendo tomados como portadores de uma história sobre os povos e as regiões.
Nos começos, como hoje (e esta é uma constante ao longo dos diversos paradigmas civilizacionais ditos “ocidentais”, onde tal culto começou, para depois se expandir, imperialisticamente, pelos “novos” mundos e não tão novos – Choay cita o exemplo do Japão), essa valorização do passado edificado, sob a forma de edifícios e construções do mais diverso tipo, não é necessariamente sinónimo de protecção.
“(…) o desenvolvimento das colecções e a bulimia dos coleccionadores, quer se trate de inscrições ou de esculturas, encontravam um terreno privilegiado nos edifícios aos quais essas pedras erram arrancadas sem pudor. Este tipo de degradação devia crescer com o número dos amadores e com o progresso do comércio da arte.” (p.58)
A negrito, as duas causas principais que se vislumbram como exacerbamento da situação nos tempos actuais. Parêntesis, nosso, para mencionarmos as tão conhecidas visitas a geossítios (como a pedreira das pedras parideiras, na Serra da Freita, ou a pedreira do Galinha, ou outro, onde, mesmo com medidas de salvaguarda como delimitação do “fenómeno a observar”, nos deparamos com pedras arrancadas por aqui e por ali. Se fosse possível, também levaríamos os buracos das pegadas…)
Mas a autora exprime ainda melhor o paradoxo desta “valorização”:
“Finalmente, a atitude contraditória dos papas e da sua corte é ditada sobretudo por políticas económicas e técnicas ligadas à necessidade de embelezar e de modernizar a cidade e de a tornar numa grande capital secular. A urgência da acção exige materiais de construção, de que não se dispõe em quantidades suficientes, e espaços livres para se realizar os seus programas e rivalizar com a obra da Antiguidade. Tal como mais tarde, no contexto da modernização do classicismo, ou ainda na sequência da venda dos bens nacionais iniciada em França com a Revolução, ou mesmo como ainda hoje diante dos nossos olhos e pelas mesmas razões, os empreendedores e os promotores dos trabalhos são, muitas vezes, os executantes das rasteiras obras de destruição.” (p.58)
Em tempos de picos de concentração e de desequilíbrios, escasso fica também o espaço, outra das causas para a degradação daquilo este culto do património pretende precisamente defender.
Mais à frente:
“A consagração do monumento histórico não mereceria o seu nome se se limitasse ao reconhecimento de novos conteúdos e valores. Ela está, para além disso, fundada sobre um conjunto de práticas cuja institucionalização foi catalisada pelo poder das forças destrutivas – já não deliberadas e ideológicas [“vamos pilhar e destruir esta marca da civilização / ideologia anterior pois a nossa/s é/são moral e esteticamente superior”], mas inerentes à lógica da era industrial – que ameaçam desde então os monumentos históricos. A mutação que transforma simultaneamente os modos de vida e a organização espacial das sociedades europeias torna obsoletos os tecidos urbanos antigos. Os monumentos que aí se inserem aparecem de repente como obstáculos e entraves a derrubar ou a destruir para dar um lugar limpo ao novo modo de urbanização, ao seu sistema e às suas escalas viárias e parcelares. Para além disso, a manutenção dos edifícios antigos é cada vez mais negligenciada e o seu restauro já não obedece a conhecimentos regulamentados. É-se assim confrontado com dois tipos de vandalismo, que foram, na época, designados em França e em Inglaterra pelos mesmos adjectivos: destruidor e restaurador.” (pp. 150-1)
Françoise Choay vai realçando que, para o crescimento dos instintos protectores dos, portanto, monumentos, se foram conceptualizando formas de preservação como a legislação e o restauro (sob diversos tipos de intervenção, assunto em que os primeiros teóricos divergiam radicalmente. Mais tarde, foi achado um ponto de equilíbrio entre o “deixar apodrecer, porque é assim que ele foi feito e nós não podemos tocar-lhe” e as “obras de protecção para a salvaguarda da integridade do edifício”).
Mais, esta perspectiva protectora foi-se alargando até “tomar conta” dos próprios espaços edificados e de cidades inteiras. Porém, a autora refere que se trata de um fenómeno muito recente: “(…) a história da arquitectura ignora a cidade. Sitte nota com pertinência em 1889: «Mesmo a nossa história da arte, que trata dos fragmentos mais insignificantes, não reservou o mais pequeno lugar à construção das cidades.» Entre a Segunda Guerra Mundial e os anos oitenta do século XX, poucos são ainda os historiadores e os historiadores de arte que trabalharam o espaço urbano.” (p.192)
E prossegue:
“Hoje em dia, assiste-se, contudo, a um florescimento de trabalhos sobre a forma das cidades pré-industriais e das aglomerações da era industrial. Este movimento foi impulsionado pelos estudos urbanos (…)A conversão da cidade material em objecto do saber foi provocada pela transformação do espaço urbano consecutivo à revolução industrial: abalo traumático do meio tradicional, emergência de outras escalas viárias e parcelares. É então que, por efeito de diferença e, de acordo com a palavra de Pugin, por contraste, a cidade antiga se torna objecto de investigação.” (p. 193)
(continua)
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