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"O Direito à Cidade", de Henri Lefebvre

1 – Há dois conjuntos de questões que têm velado os problemas da cidade e da sociedade urbana: as questões do alojamento e do “habitat” e as da organização industrial e da planificação global. As primeiras, por baixo, e as segundas, por cima, têm produzido uma explosão da morfologia tradicional das cidades, desviando as atenções, enquanto se prosseguia a urbanização da sociedade. 2 – Estes dois conjuntos de problemas foram e continuam a ser colocados pelo crescimento económico. A experiência prática demonstra que pode haver crescimento sem desenvolvimento social (crescimento quantitativo sem desenvolvimento qualitativo). Nestas condições, as mudanças na sociedade são mais aparentes que reais. O fetichismo e a ideologia da mudança (dita de outro modo: a ideologia da modernidade) encobrem a estagnação das relações sociais essenciais. (p.139)


Título: O Direito À Cidade

Edição Original: Le Droit à la Ville (1968)

Autor: Henri Lefebvre


Tradução: Rui Lopo

Prefácio: Carlos Fortuna

Edição: 2012

Editora: Letra Livre / Estúdio

ISBN: 978-989-8268-15-0

Paginação: 142 páginas


No regresso ao livro do mês, trazemos a seminal análise de Lefebvre, “O Direito à Cidade”. Nele, o filósofo prenunciava já a crise da sociedade (urbana ou rurbana*) nos seus valores e, por consequência, na sua organização funcional e espacial.

O esvaziamento dos poderes das comunidades, distraídas com os restos dos prazeres (ou impaladas pela cruz da propaganda), vai a par da perda dos espaços de convívio e de outras formas de fazer cidade que não a de consubstanciar e reforçar as práticas… despojadoras do poder. Mediante o servilismo mercantil e suas dependências ocupacionais.

A cidade, tal como ela for e nos aparecer, revela o conjunto dos poderes organizados, espacializados em instituições ou sedes, colonizados em áreas (maiores ou menores) do seu espaço vital visível.

Não existe nenhuma sociedade sem ordem, sem um significado, perceptível e legível no terreno. (p.32)

A materialização do poder organiza-se hierarquicamente, em lógicas que traduzem (convencionámos) a rentabilidade e eficácia da sua acção e pressupostos.

Hoje em dia, tornando-se centro de decisão ou, sobretudo, agrupando os centros de decisão, a cidade moderna intensifica a exploração da sociedade inteira (organizando não só a exploração da classe operária, mas também a de outras classes sociais não dominantes). Isto significa que a cidade não é um lugar passivo de produção ou de concentração de capitais, mas que o “urbano” intervém como tal na produção (nos meios de produção). (p.67)

Urge a inversão das práticas que construíram o inferno para a maioria e o céu para os “deuses do Olimpo”.

A multiplicação e a complexificação das trocas, no sentido lato do termo, não podem ser prosseguidas sem que existam lugares e momentos privilegiados, sem que esses lugares e momentos de encontros se afastem dos constrangimentos do mercado, sem que a lei do valor de troca seja dominada, sem que se modifiquem as relações que condicionam o lucro. (…) Se queremos superar o mercado, a lei do valor de troca, o dinheiro e o lucro, não será necessário definir o lugar dessa possibilidade: a sociedade urbana, a cidade como valor de uso? (p.83)

O processo vem desenhando-se desde longe e aparece-nos hoje como dado adquirido, inquestionável e dogmático, e – pior – como se não fosse analisável e desconstrutível.


Ao longo do século XIX, a democracia de origem camponesa cuja ideologia animou os revolucionários poderia ter-se transformado numa democracia urbana. Esse foi, e é ainda para a História, um dos sentidos da Comuna. Mas, como a democracia urbana ameaçava os privilégios da nova classe dominante, esta impediu-a de nascer. Como? Expulsando do centro urbano e da própria cidade o proletariado, destruindo a “urbanidade”. (p.28)

A transformação do espaço (qualquer espaço) em espaço urbano, na voragem industrial, acarreta externalidades (reparemos na palavra: externalidades, como sugerindo algo que afecta os que estão fora. No caso, fora dos espaços urbanos…) Mas a crise surge quando tais “danos colaterais” assumiram tal dimensão que se anunciam já DENTRO do espaço urbano. É o caso da sustentabilidade alimentar, caucionada pela praxis betonizante dos modos de vida até então óbvios ou intocáveis.

Nos países ditos “em vias de desenvolvimento”, a dissolução da estrutura agrária empurra para as cidades os camponeses desalojados e arruinados, ávidos de mudança; o bairro de lata acolhe-os e desempenha o papel mediador (insuficiente) entre o campo e a cidade, a produção agrícola e a indústria; frequentemente, o bairro de lata consolida-se e oferece um sucedâneo de vida urbana, miserável, no entanto intensa para aqueles que aloja. Noutros países, nomeadamente nos países socialistas, o crescimento urbano planificado atrai para as cidades a mão-de-obra recrutada no campo, e verifica-se o sobrepovoamento, a construção de bairros ou “raios” residenciais cuja relação com a vida urbana nem sempre se consegue distinguir. Em resumo, uma crise mundial da agricultura e da vida camponesa tradicional. (…)

Desde que surgiram os problemas de conjunto, sob o nome de urbanismo, subordinámo-los à organização geral da indústria. Atacada simultaneamente por cima e por baixo, a cidade alinha-se a partir da iniciativa industrial e figura na planificação como motor, tornando-se um dispositivo material próprio para organizar a produção, para controlar a vida quotidiana dos produtores e o consumo dos produtos.

(pp.84-5)


A extensão da cidade produziu o subúrbio, e depois o subúrbio engoliu o núcleo urbano. Os problemas foram invertidos, quando não são ignorados. Não seria mais coerente, mais racional e mais agradável ir trabalhar para o subúrbio e habitar na cidade em vez de trabalhar na cidade e habitar num subúrbio pouco habitável? (…) Para o Poder, desde há um século, qual é a essência da cidade? ela fervilha de actividades suspeitas, de delinquências: é um centro de agitação. O poder de Estado e os grandes interesses económicos só podem conceber uma estratégia: desvalorizar, degradar, destruir a sociedade urbana. (p.87) A crise espacial entrelaça-se / é produto da crise da organização, com a sobreposição dos interesses da maioria pelos interesses da minoria capitalista ou institucional (não necessariamente económica, mas visando uma certa racionalidade que pretende atingir a eficácia, o domínio através da acumulação): Esta crise da cidade é acompanhada, um pouco por todo o lado, de uma crise das instituições urbanas (municipais) devida à dupla pressão do Estado e da iniciativa industrial. Tanto o Estado, como a empresa, como os dois (rivais ou concorrentes, mas frequentemente associados) tendem a apoderar-se das funções, atributos e prerrogativas da sociedade urbana. Em certos países capitalistas, deixa a iniciativa “privada” ao Estado, às instituições e organismos públicos, algo mais do que aquilo que recusa encarregar-se por ser demasiado oneroso? (p.88) O mundo da mercadoria tem a sua lógica imanente, a do dinheiro e do valor de troca generalizado sem limites. Uma tal forma, a da troca e da equivalência, mantém apenas indiferença em relação à forma urbana; ela reduz a simultaneidade e os encontros aos que praticam trocas, e o lugar do encontro reduz-se ao lugar onde se firmam contratos ou quase-contratos de troca equivalente: ao mercado. (p.91)

O cerco aperta-se, as fugas, dêem por onde derem, vislumbram-se na loucura e na alienação ao virar da esquina. Seja no património, seja no turismo, seja em qualquer aspecto, transformado, kitchizado, para consumo dos ávidos carentes do real.

Se o espectro do Comunismo já não persegue a Europa, a sombra da cidade, o lamento pelo que morreu porque foi morto, porventura o remorso, substituíram o antigo assombramento. A imagem do inferno urbano que se prepara não é menos fascinante, e as pessoas precipitam-se para as ruínas das cidades antigas com o objectivo de as consumir turisticamente, julgando assim obter a cura para a sua nostalgia. (p.102) De forma muito estranha, o direito à natureza (ao campo e à «natureza pura») entra na prática social desde há alguns anos através do lazer. Esse direito fez o seu caminho através de protestos que se foram tornando banais contra o ruído, a fadiga, o universo «concentracionário» das cidades (enquanto a cidade apodrece ou explode). Estranho encaminhamento, dizemos nós: a natureza entra no valor de troca e na mercadoria. (p.118) A materialização mais evidente deste conflito de visões do mundo e de valores (públicos e privados) tem, como vimos na primeira citação (que é das últimas passagens do livro), na sua base a discrepância e mútua necessidade (mão-de-obra para escravizar, caixotes para a enfiar, por um lado, e actividades económicas para acumular e reprodução e colonização espacial para crescer e se afirmar, por outro) entre desenvolvimento (social) e crescimento (económico): As massas, pressionadas por múltiplos constrangimentos, alojam-se espontaneamente em cidades-satélite, em subúrbios programados, em guetos mais ou menos «residenciais», possuindo apenas para si um espaço cuidadosamente medido, enquanto o tempo lhes foge. As massas conduzem a sua vida quotidiana de forma subordinada (sem o saberem) às exigências da concentração dos poderes. Mas não se trata aqui de um universo concentracionário. Tudo isto pode suceder na ideologia da liberdade e sob a capa da racionalidade, da organização e do planeamento. Estas massas que não merecem o nome de povo, de popular, de classe operária, vivem «relativamente bem», tirando o facto de a sua vida quotidiana ser telecomandada, e sobre elas pesar a ameaça permanente do desemprego, o que contribui para um terror latente e generalizado. (p.123) A materialização conceptual que de tudo isto se releva pode ser lida como paralela à globalização, pois parece ignorar fronteiras e obstáculos. Porque a globalização vigente é a da economia capitalista, não a da cultura da diversidade e da transformação (para melhor) das condições de vida das massas disformes (disformadas) do planeta (cada vez mais cinzento), Lefebvre vê no automóvel o “objecto-piloto no mundo das mercadorias, que tende a levantar [suprimir] esta última barreira: a cidade.” (p.129): Os habitantes do Olimpo, como a nova aristocracia burguesa (quem o ignora?) já não habitam. Eles andam de palácio em palácio ou de castelo em castelo; eles comandam uma frota ou um país a partir de um iate; eles estão em toda a parte e em nenhuma. Exercem assim fascínio sobre as pessoas mergulhadas no quotidiano, eles que transcendem a quotidianidade; possuem a natureza e deixam os seus esbirros fabricar a cultura. (p.119) Agora não é só a corrosão física das fronteiras jurisdicionais (pelos transportes) que praticam o poder, mas também a das institucionais e mentais, mediante o fluxo de dados e informação via meios de comunicação para as massas. Detidos pelas minorias, claro está. A salvaguarda da sociedade urbana (da cidade, como o autor a entende) não é (ou nem é, de todo) a mera protecção da memória dos monumentos, ou a organização saudável dos “bairros residenciais”, ou a racionalidade (económica) dos comportamentos (visem eles, até, a ecologia), mas sim a prática de valores que contrariem, em todos os domínios da vida social, o valor imperante: o de troca. A apropriação da cidade pelos cidadãos é caminho que desbrava e destrói a privatização da cidade (dos corpos e das almas) pelas empresas e instituições.

É essa a crise basilar que está a inquinar e destruir o mundo. E Lefebvre, já em 1968, o sabia bem.

Que dia é hoje, hein??

* Rurbano refere-se à interpenetração ou hibridização do rural e do urbano, que representa, aliás, uma grande extensão actual do mundo, quer em materialização espacial, quer comportamental. Esta é também a crítica / análise feita por Álvaro Domingues, em “Vida no Campo“.


Boas leituras geográficas.

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