Título: O Enigma do Capital e as Crises do Capitalismo
Edição Original: The Enigma of Capital – And the Crises of Capitalism (2010)
Autor: David Harvey
Tradução: Maria Carvalho
Edição: Março de 2011
Editora: Bizâncio
ISBN: 978-972-53-0477-8
Paginação: 334 páginas
“Para criar uma nova geografia urbana a partir dos destroços da velha, é muitas vezes necessário recorrer à violência. Haussmann destruiu os velhos bairros pobres parisienses, recorrendo à expropriação para benefícios supostamente públicos, em nome dos melhoramentos cívicos, da restauração ambiental e da renovação urbana. Concebeu deliberadamente a remoção de grande parte da classe trabalhadora e de outros elementos indisciplinados, bem como de indústrias insalubres, do centro de Paris, onde constituíam uma ameaça à ordem e saúde pública e, evidentemente, ao poder político. Criou uma forma urbana na qual se pensava ser possível (incorrectamente, como se viu na Comuna de Paris de 1871) estabelecer níveis de vigilância e de controlo capaz de assegurar o fácil domínio pelo poder militar das classes agitadas.
Na realidade, como disse Friedrich Engels no seu opúsculo de 1872, A Questão do Alojamento:
[…] a burguesia só tem um método para resolver o problema da habitação à sua maneira – isto é: resolvê-lo de tal maneira que a solução crie sempre um novo problema. Este método tem um nome, o de «Haussmann» […] Por «Haussmann» entendo a prática generalizada de abrir brechas nos bairros operários, sobretudo nos situados nas grandes cidades, quer isso corresponda a uma medida de saúde pública, de embelezamento, à procura de locais comerciais no centro, ou a exigências de circulação – como instalações ferroviárias, ruas, etc. [que, por vezes, parecem ter como objectivo dificultar o levantamento de barricadas]. Qualquer que seja o motivo, o resultado é sempre o mesmo: as ruelas e os becos mais escandalosos desapareceram e a burguesia glorifica-se altamente com estes grandes sucessos – mas ruelas e becos reaparecem imediatamente e frequentemente muito próximos. Os focos de epidemias, as caves mais imundas, nas quais noite após noite o modo de produção capitalista encerra os nossos trabalhadores, não são eliminados, mas sim… transferidos. […] A mesma necessidade económica fá-los nascer aqui como ali.*
Os processos descritos por Engels reaparecem vezes sem conta na história urbana capitalista. Robert Moses «levou o cutelo para o Bronx» (nas suas infames palavras), e muitos e vigorosos foram os lamentos dos grupos e movimentos da zona, que acabaram por se agregar em torno da retórica reformista urbana Jane Jacobs, perante a inimaginável destruição do valioso tecido urbano mas também perante a perda de comunidades inteiras de residentes e das suas redes de integração social estabelecidas havia muito. Quando o poder brutal das expropriações pelo Estado e a destruição de bairros mais antigos deu lugar à construção de auto-estradas e à renovação urbana enfrentaram uma resistência bem sucedida e foram contidos pelas agitações políticas e de rua de 1968 (com Paris novamente como epicentro, mas com violentos confrontos em toda a parte, desde Chicago à Cidade do México e a Banguecoque), iniciou-se um processo muito mais insidioso e canceroso de transformação, por meio da imposição de disciplina fiscal a municípios urbanos democráticos, da eliminação do controlo dos mercados imobiliários, da especulação imobiliária e da afectação da terra a utilizações que geravam as mais elevadas taxas de rendibilidade financeira.
Engels compreendia muito bem este processo.
[…] A extensão das grandes cidades modernas dá aos terrenos, sobretudo nos bairros do centro, um valor artificial, que cresce por vezes em enormes proporções; as construções que aí estão edificadas, em lugar de aumentarem este valor, pelo contrário o diminuem, pois já não correspondem às novas condições e são demolidos para serem substituídas por novos edifícios. E isto verifica-se sobretudo para os alojamentos operários situados no centro, e cujo aluguer, mesmo nas casas superlotadas, não podem nunca ultrapassar um certo máximo, ou pelo menos só o podem de uma maneira extremamente lenta. Por isso são demolidos, e em seu lugar são construídas lojas, grandes armazéns e edifícios públicos.*
É deprimente pensar que tudo isto foi escrito em 1872. A descrição de Engels aplica-se directamente aos processos urbanos contemporâneos que ocorrem em grande parte da Ásia (Deli, Seúl, Bombaim), bem como à «gentrificação» contemporânea dos bairros nova-iorquinos de Harlem e Brooklyn, por exemplo. A criação de novas geografias urbanas implica inevitavelmente deslocação e expropriação.
Vejamos o caso de Bombaim, onde seis milhões de pessoas são consideradas oficialmente como vivendo em bairros de lata, construídos, na sua maior parte, em terras sem cadastro de propriedade (nos mapas da cidade, os lugares onde vivem estão em branco). Na tentativa de transformar Bombaim num centro financeiro global capaz de rivalizar com Xangai, o surto de crescimento imobiliário acelera e os terrenos ocupados pelos bairros de lata tornam-se cada vez mais valiosos. O valor do terreno em Dharavi, um dos bairros de lata mais importantes de Bombaim, é calculado em dois mil milhões de dólares, e acentuam-se diariamente as pressões no sentido de o limpar, alegadamente por razões ambientais e sociais. As potências financeiras, apoiadas pelo Estado, pressionam no sentido de uma limpeza forçada, nalguns casos com expropriação violenta de um terreno ocupado há uma geração pelos seus habitantes. A acumulação de capital por intermédio da actividade imobiliária é um negócio florescente porque a terra é adquirida quase a troco de nada. Será que as pessoas forçadas a sair recebem uma compensação? As afortunadas recebem alguma. Mas, embora a constituição indiana especifique que o Estado tem a obrigação de proteger a vida e o bem-estar de toda a população independentemente da sua casta ou classe, e de garantir os seus direitos de habitação e protecção, o Supremo Tribunal indiano reescreveu este requisito constitucional. Os ocupantes ilegais que não consigam provar em definitivo que residem há muito tempo na terra que ocupam não têm direito a indemnização. Conceder-lhes esse direito, afirma o Supremo Tribunal, equivaleria a recompensar os carteiristas pelos seus actos. Por conseguinte, os habitantes dos bairros de lata vêem-se obrigados a resistir e lutar ou a pegar nos poucos pertences e acampar na berma da auto-estrada ou onde quer que encontrem um espacinho.
Também nos Estados Unidos é possível encontrar exemplos semelhantes de expropriação (embora menos brutais e mais legalistas), por abuso dos direitos de expropriação para fins públicos, quando se desalojam residentes de longa data de habitações decentes, tendo em vista a utilização dos terrenos para fins mais lucrativos (condomínios e grandes superfícies). No Supremo Tribunal dos Estados Unidos, os juízes liberais venceram os conservadores e consideraram perfeitamente constitucional que as jurisdições locais se comportem deste modo para aumentarem a sua base fiscal fundiária. Ao fim e ao cabo, progresso é progresso!
Na década e 1990, em Seul, as construtoras e imobiliárias contrataram esquadrões de lutadores de sumo para invadirem bairros inteiros e destruírem com marretas não apenas habitações mas também os pertences das pessoas que tinham construído as suas casas na década de 1950, nas colinas da cidade, em terrenos que se tinham tornado valiosos. Neste momento a maior parte dessas colinas está coberta de torres altas que não guardam vestígios do processo brutal de limpeza dos terrenos que permitiu a sua construção. Na China, milhões de pessoas estão neste momento a ser expropriadas dos espaços que ocupavam há muito. Como não possuem direitos de propriedade, o Estado pode expulsá-las da terra, oferecendo-lhes um pagamento mínimo em dinheiro para as ajudar a sair (antes de entregar os terrenos a imobiliárias com uma elevada taxa de lucro). Em alguns casos, as pessoas saem voluntariamente, mas também há notícia de actos generalizados de resistência, a reacção usual é a repressão brutal do Partido Comunista. As populações de zonas rurais mais próximas das cidades também estão a ser expulsas sem cerimónia, à medida que as cidades se vão expandindo. O mesmo se passa na Índia. Os governos centrais e os dos Estados estão a favorecer as zonas especiais de desenvolvimento económico, o que desencadeia violência contra os produtores agrícolas: o acontecimento mais grave foi o massacre de Nandigram em Bengala Ocidental, orquestrado pelo partido marxista no poder, destinado a abrir caminho ao capital indonésio, tão interessado no desenvolvimento imobiliário como no desenvolvimento industrial.”
(pp. 194-198)
* A Questão do Alojamento, trad. de Ribeiro da Costa, Porto: R. da Costa, 1971 (Cadernos para o diálogo, 3)
Voltámos com a rubrica Livro do mês.
Deste interessante e pertinente livro do geógrafo inglês David Harvey, que já tínhamos trazido aqui ao Georden, optámos por transcrever (é longa, sabemo-lo…) uma parte acutilante e que nos importa mais. A saber: as implicações geográficas, espaciais, do modelo de reprodução capitalista.
Durante a leitura, várias referências nos foram sugeridas / lembradas / corroboradas. Duas delas (e só para citar livros): a forma destrutiva como a cidade invisível de Leónia (As Cidades Invisíveis) vai deixando inutilizado o espaço, por um lado; a investida impiedosa, terrorista e imparável da especulação económica e propagandística das empresas e dos Estados no sentido de expropriar o homem a favor de alguns homens (A Doutrina do Choque, de Naomi Klein).
Não tenhamos ilusões: estamos a perder a cada dia que passa.
O único objectivo é retirarem-nos todos os direitos.
Esta é a forma como vão crescendo os espaços construídos por todo o lado em que o poder coercivo do Estado não está ao serviço das pessoas.
Quando vemos milhões, milhares, centenas, dezenas que sejam, uma família ou uma pessoa que seja, a ser pressionada no sentido de abandonar o lugar onde vive (Alqueva, lembrei-me), importa perguntarmo-nos: em nome de quê?
Importa perguntarmo-nos: em nome dessas pessoas?
Em tempos de globalização, que é feroz e nos expurga a capacidade de sentir e de discernir as coisas (como a de compreender que a globalização é impulsionada apenas por motivos económicos) importa fazer perguntas. E que elas sejam concretas e definidas, assumidas e o mais comprometidas possível:
Se algo é posto em causa, temos de perceber se o que está a ser desestabilizado vai ficar melhor.
O que tem acontecido nestes casos é que essas pessoas não saem beneficiadas em nada. São apagadas do mapa. Transferidas.
Transferidas.
Num mundo finito.
Transferidas.
Seja para mais longe, onde esta “cidade” (onde “o capital”) ainda o não ameace, seja para uma prisão (por não acatar as decisões “que importam a todos”, por estar contra a lei, contra o bem comum, por atentar contra a autoridade, por ser terrorista e violento num estado democrático…) seja para um hospício para apanhar choques eléctricos (por ser / para ser / por ser considerado maluquinho, alienado…).
As pessoas precisam de um lugar para viver.
Retirar-nos o direito a existir é das maiores violências (simbólicas ou efectivas) que podem exercer sobre os seres humanos.
Querem violência, violência terão.
Continuem a juntar cada vez mais espoliados de um lado, que não esperais pela demora. Esta violência já dura há séculos!
As vossas maquinações para nos controlardes não serão eficazes para sempre!
Ao longo das estradas, os campos agrícolas, uma vez abandonados, vão sendo alvo da cobiça dos construtores (destruidores).
Por todo o lado, dos montes se erguem placas a vender lotes para urbanizar.
O arrasamento de árvores e mato de um lugar para um empreendimento imobiliário significa um CRIME.
(Antes que venham acusar-nos de impedir o progresso, com o argumento de que as pessoas precisam de um tecto, respondemos. E respondemos de duas formas:
Há muita gente sem casas.
Dessas não falais???
e
Há muitas casas sem gente.
Dessas não falais???
A perda dos espaços biológicos e (mais ou menos) naturais para construir casas ou centros comerciais é CRIME!
Mas como está na lei, baixamos a cabecinha e engolimos em seco.
Crime, porque um espaço assim, com árvores ou vegetação, beneficia todos os seres vivos e o novo espaço, ocupado com casas e cimento, apenas beneficia quem para lá for.
Por outras palavras, caso queiram, significa a transferência de algo do público para o privado.
Sim.
É de coisas concretas que estamos a falar.
Parecem migalhas?
Juntemos as migalhas todas e vejamos quantos pães teremos.
Foi assim que milhares de deserdados foram engrossar “As Vinhas da Ira” para o Oeste dos Estados Unidos.
É assim que temos assistido, impotentes (mas somos nós os beneficiados, acenam-nos…), à destruição dos espaços públicos (dos espaços de cidadania) e dos espaços verdes (dos espaços livres, livres do totalitarismo do consumo e do desperdício, da ideologia e do pensamento único da troca comercial) : montes, rios, florestas, pântanos….espaços húmidos, geralmente falando.
(Depois queixamo-nos das alterações climáticas sem sabermos identificar muito bem as causas…).
É assim que as nossas cidades estão cada vez maiores e ao mesmo tempo mais desumanizadas, vazias e feias, a apodrecer por dentro.
O desenvolvimento? onde é que ele já vai… (na periferia)!
(No capitalismo – não no capitalismo selvagem, pois é redundante dizer capitalismo selvagem – não há outra forma de espacialização, nem outra definição para crescimento.)
Os impostos imobiliários são outra forma de violência para pôr a corda na garganta de quem lá vive.
A transferência tem de ser!
Tudo tem de passar para as mãos dos privados.
O trabalho, a Segurança Social, a Água, a Electricidade, a Saúde, o Ensino – TUDO, ABSOLUTAMENTE TUDO tem de passar para a gestão de uns quantos que, não nos deixemos levar em ficções, têm como único objectivo o lucro.
Se são empresas, estão ao serviço do capitalismo. E os capitalistas têm de se reproduzir. Impreterivelmente. Por duas razões: para crescer e fazer face às outras empresas. E esta pela segunda razão: por causa da concorrência.
Concorrência porquê? Porque o capitalismo não combina com igualdade.
E aqui temos, portanto, o ímpeto maravilhoso da mão invisível dos terroristas capitalistas e de todos os que advogam o bom funcionamento do mercado. Mercado? O que é o mercado?
O mercado são as pessoas?
São só algumas. Então não quero o mercado.
Temos de querer melhor.
Somos capazes de melhor.
Temos de EXIGIR melhor.
As regiões (os países) são postas em crise (postas em cheque)?
Para forçar e fazer aceitar intervenções estrangeiras que as vão salvar.
Salvar de quem?
Da imensa mole de caídos empobrecidos que sofrem a dor, a humilhação, a privação e a impossibilidade quotidiana de aceder à tão afamada dignidade humana…?
Não.
Quem importa salvar primeiro são as empresas e os bancos.
As empresas e os bancos são as pessoas?
Sim, em parte.
Pronto, e com este argumento final, acabamos vendidos.
Com a corda na garganta e o garrote no estômago.
Submetidos aos interesses que a única coisa que sabem fazer é extrair-nos cada vez mais de nós mesmos.
Levando-nos à loucura.
Como
“Eles não sabem nem sonham
que o sonho comanda a vida…“,
eles descuram o poder
de quem não tem nada a perder.
Uma nota importantíssima à tradutora, Maria Carvalho, e à revisora, Sandra Pereira – em tempos de tanta insanidade mental isto sente-se muito mais! -: não encontrámos um único erro ortográfico no texto.
Ao mesmo tempo que dizemos isto estamos a descredibilizar-nos.
Mas comprove e teste quem tiver a ousadia e possibilidade de ler este livro.
Parabéns, Bizâncio.
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