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"A Cidade da Saúde", de Artur Portela

[Artur Portela]

"Faz questão de sublinhar que todas as semelhanças das suas personagens e histórias

com a realidade e figuras reais são coincidências absolutas."


Título: A Cidade da Saúde

Autor: Artur Portela


Edição: Outubro de 2012

Editora: Bizâncio

ISBN: 978-972-530-514-0

Paginação: 205 páginas

O não-anunciado regresso de Artur Portela.

Silencioso.

Silencioso, não: calado.

O regresso a edições em papel. (“Cama Desfeita“, está apenas via rede, via pdf)

O anterior, neste mesmo veículo de comunicação, fora já de 2009, “A Guerra da Meseta“.

Actualíssimo, sarcástico e mordaz, este romance, como consta na capa, nada tem de romântico. Será mais, ou melhor, uma narrativa. Uma novela, quanto muito. Fragmentariamente, como que a acompanhar a nossa percepção do real que se impõe, que nos impõem: mediaticamente. Mas, a atestar a inteligência de qualquer criador (e a atestar o respeito por aqueles que contemplam as suas criações), cujos elos somos nós a coser.

O desencanto e o amesquinhamento da tão fugidia realidade em que vivemos fica, narrado e descrito pelo tom irónico e sabedor acutilante, tapado pelos sorrisos com que a lemos neste novo livro de Artur Portela. E os sorrisos amargos são folhas a tapar a podridão, e a amargura é, ela mesma, claro, devida a essa mesma podridão dos costumes comezinhos que caracterizam e emperram a sociedade pequenina dos portuguêsmente alienados povo e valores miúdos.

A prosa de Artur Portela (caiu há muito o Filho das inscrições nos livros: terá sido pela quebra da memória?) é irrepreensivelmente correcta. Coisa para nós fascinante, tanto mais que ele usa as vírgulas e as sub-orações como mais ninguém. Talvez apenas assemelhável (escola da extensão?) a um Saramago mais ensaísta. Já noutro livro da Bizâncio aludimos à rectidão da língua, o que, voltando a dar-se, é renascido oásis na propalação fétida reinante que encharca as anteriormente-conhecidas-por livrarias agora supermercados de papel com letras.

Esta, com as instituições que tudo tomam e organizam, tal como as agências, as económicas e as de vigilância, que tudo registam, é uma distopia mais nos escaparates para ninguém ler.

Pois que mesmo sendo a realidade mais rica que a ficção, importa a forma como ela no-la é descrita, importa a maneira como a vamos apreendendo: cartesianamente – paradigma de toda a lógica renascentista de uma luz que se vai eclipsando – argumentos mal construídos derivam em erros de conclusões e consequências práticas desacertadas.

Em 122 capítulos eloquentes, a acção vai tomando forma. Na cidade paradigmática do saque, no bairro da Saúde. Por entre o lodo e a pequenez. Totais. Talvez por isso, o livro, em apoteose, termine em topos. Numa construção humana, ainda uma faulty tower.

Mas depois ascendendo aos ares.

Esperançadamente.

Que a podridão é apenas o começo de algo.

Deixamo-vos, sem querer desvendar mais, algumas das melhores espêlhicas passagens de “A Cidade da Saúde”.

Artur Portela continua – descobrimos há poucos dias – a escrever no Jornal do Fundão. E há décadas que o faz.

Acto contínuo pelo qual nos sentimos honrados.

8 – A Embaixada

As Embaixadas, agora, são duas. Uma fica do lado de lá da cidade e o Embaixador recebe um número elevado de ex-ministros das Finanças. In fact, you, Portuguese economists, you are really a state within a state. E depois, em voz baixa, para o Secretário da Embaixada: Pity they are so often totally wrong.

27 – O Telefone [ou A telefonista…]

Eu agora não tenho cá mais médicos, pois, queria falar com a Sr.ª Dr.ª, queria, também eu queria muita coisa, mas não, a Sr.ª Dr.ª não a atende, não insista, a Sr.ª Dr.ª agora não a atende, a Sr.ª Dr.ª agora está numa consulta, foi o que a Sr.ª Dr.ª me disse para dizer à Sr.ª e a todas as Sr.as e a todos os Srs., en não dá, a Sr.ª Dr.ª não nos deixa dar o número do seu telemóvel pessoal, isso é que era bom!, ó meu caro Sr., não interrompa que eu agora estou a atender esta Sr.ª, ó minha Sr.ª, eu, se fosse dizer às Sr.as Dr.as e aos Sr.s Drs. tudo quanto me pedem para eu lhes dizer, e imediatamente!, eu não fazia outra coisa, quer dizer, não, não, eu não posso tomar nota de recados nenhuns, quais recados!, importantes?, são todos importantes, urgência?, ó minha Sr.ª, não, nem pensar, não, ó minha Sr.ª, eu agora tenho a Sala de Espera cheia e não posso estar aqui e não posso prometer nada, a Sr.ª Dr.ª foi para um congresso e agora só para o mês que vem, princípio do outro, na melhor das hipóteses…

33 – Os Escoteiros

O Economista Bancário marido da psiquiatra-directora quer saber as linhas com que se conse a Clínica. E acrescentar, pensa, qualquer coisa. Acrescentar qualquer coisa à estatística contabilística pura e dura com que os médicos, nos seus intervalos das grandezas dos seus actos justamente médicos, cansadamente assumem o seu amadorismo como gestores. (O marido da psiquiatra-directora será, virá a ser, um gestor hospitalar, virá a ser mais que um gestor hospitalar. Jogou râguebi. Está a começar a mudar para o golfe). Quer implementar na Clínica uma intervigilância de tecnologia OM, Olho de Mosca. Todos, menos aqueles que não, vêem todos a vê-los, a eles. Isto é, o crescimento exponencial de uma sensação de responsabilidade, digamos, de punidade. Ou seja, de fecunda insegurança. Ganha-se o ambiente justo. E até talvez se levante alguma descuidada e ansiosa lebre. Já se sabe que os médicos são narcisos ajuramentados e que a Saúde é uma anarquia. Um sentimentalismo. E um populismo sempre em riso de Requiem demagógico. De feroz aproveitamento político. A Clínica Berlim, que é para os psiquiatras-associados e os psicólogos-associados uma cúpula, é, para ele, economista bancário, uma primária. Uma estação suburbana que dá direito a aceder a desafios maiores. Os doentes não são pessoas. Os doentes são doenças com apelidos em anexo. Tanto os doentes como os médicos são transmissíveis. O acto médico não é do médico. É do sistema. O médico é um instrumento. O que interessa são as articulações nas superestruturas. Carteiras de doentes. Cotações dos médicos. Rentabilidade de cada médico. Rentabilidade de cada psicólogo. E depois protocolos. Negociações de protocolos. Centros de compras. Companhias de seguros. Associações profissionais. Corporações. Instituições. Depois, muito, muito acessoriamente, a perspectiva micro. Doente puxa doente. Domicílios. Internamentos. Casas de saúde. Topografias. Companheirismos. Cumplicidades universitárias. Tu agora onde é que estás? Não me digas! Digo, digo. Discipulismo. O quê, tu foste aluna do Prof. Macarena? Em que ano? Pois eu. Tu lembras-te do? Eu ainda tive o Malines como assistente!

45 – Os Seguranças

O Administrador do Condomínio não percebe por que lhe pediram, no átrio, os documentos. E por que foi um médico. Aquele. E com que autoridade? E de bata, no átrio do Prédio? A porteira decidiu tratar todos aqueles estranhos por Srs. Doutores.

Batem, na Álea, portas de carros. Os polícias das segways não sabem quem ali vai, mas batem, pelo sim, pelo não, continências.

56 – O Turismo de Saúde

O Economista bancário futuro gestor hospitalar teme pela imagem do Bairro Pinel como Bairro de Saúde Mental, no quadro mais amplo da Cidade da Saúde e no quadro ainda mais amplo de um país virado para o «Turismo da Saúde». Turismo de qualidade de saúde de qualidade. Qualidade que só se assegura em binómio com a rentabilidade. Não sendo a saúde um valor absoluto. Muito menos a doença. Que preferivelmente deve ser rica, pelo menos abonada. Pedindo técnicas viáveis. Justificando-se assim o investimento em doenças ditas sustentáveis. Ou seja, não de caixão à cova.

68 – Os Bons Rapazes

Os Ex-Ministros das Finanças reiteram que não são políticos. Política é a circunstância. Eles intervêm após se desenhar e começar a firmar a conjuntura. Começam a intervir. Avisando que tinham previsto tudo. Um deles, para espanto de todos os outros, admite que se enganou. O que, confidenciam entre si, os outros, cria um precedente. Definem-se como uma geração de técnicos. Digamos que consentem ser tomados por altíssimos técnicos. Todos, ao fim e ao cabo, da mesma geração. Embora sejam de várias gerações. E o que admite que se enganou é de todos o mais velho. Embora, vendo bem, são todos velhos. As Finanças, elas próprias, grisalhas. Têm de ser. O dinheiro é muito antigo. Tem uma dignidade intrínseca. Pelo que todos têm de ter, e sempre, razão. Há entre eles uma cumplicidade de casta. Altíssimos funcionários do Estado, consentem que se diga, deles. Embora, para eles, os superlativos sejam uma vulgaridade. Um nervosismo. E um jornalismo. Ou seja, uma futilidade. Ninguém sabe nada a não ser eles. O primeiro-ministro é antes. Eles são. Antes, durante e depois. De resto, foi aluno de todos eles. Lembram-se, quase todos, de terem sido chamados pelo outro regime, exactamente por um professor de óculos amargos. Ficaram secretários de Estado. O regime seguinte, quando chegou, abriu a porta. Estavam todos. Nem tinham, técnicos, que não estar. Era tudo muito complicado: serviço é serviço, cognac é cognac. Ficaram. Na generalidade são bons rapazes. Quando discordam uns dos outros, predomina a solidariedade entre eles. Nunca nenhum deles disse ao mais velho que não devia ter dito que se tinha enganado. Recentemente, uma agência de comunicação tentou explicar-lhes que não, que até humanizava. O mais velho ouviu e sorriu. Um sorriso que era simultaneamente antiquíssimo e inovador.

Estão, porém, ou estiveram, quase todos, sentados em larguíssimas mesas, cujos tampos, vendo bem, são extensas árvores genealógicas. Que começam lá onde a genealogia se esboça. Na Baixa Idade Média. Ou seja, estão nos bancos. Nos apelidos que os bancos trazem. E enleiam. Não usam esses apelidos.

Obrigados, uma vez mais, Artur Portela.


Boas leituras geográficas.


Nota: Envia a tua sugestão de leitura para georden@gmail.com que, posteriormente, publicaremos, neste mesmo espaço.

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