Muito se tem falado sobre o "autogolo urbanístico" do Cristiano Ronaldo, não só na comunicação social, como nas redes sociais. Tenho estado relativamente interessado neste assunto, em especial, pelos argumentos que apresenta o arquiteto José Mateus, do atelier de arquitetura ARX Portugal, autores do projeto imobiliário Castilho 203.
"Há cultura, há autorias, há regras, há respeito pelos outros e pelo trabalho dos outros, há civismo, há princípios que não admito que sejam atropelados. Seja por quem for." (José Mateus, 2021).
Estou profundamente solidário e corroboro na íntegra com tudo o que enumera, no entanto, este episódio levou-me a recordar de um Seminário de Arquitetura que marcou o meu percurso formativo, onde ouvi José Mateus afirmar sobre um dos seus projetos: "projetei as janelas viradas para o próprio edifício porque a área exterior adjacente era feia". Nessa altura percebi que a arquitetura no seu desenho podia ser egoísta.
Hoje, acho irónico o arquiteto José Mateus ficar horrorizado com um anexo em marquise, quando o próprio edifício tem um volume de construção enorme face à área adjacente. O projeto da sua construção, com a demolição total do anterior edifício, podia ter sido uma oportunidade única de se "reconstruir cidade". Mas o que aconteceu foi apenas o reabilitar (reconstruir, na verdade) do Castilho 203, conforme as necessidades do cliente/investidor.
Se o Cristiano Ronaldo tivesse falado com o José Mateus, hoje não existia este aparato todo. A obra teria sido autorizada e nem se falava da altura máxima permitida, muito menos se cumpria, ou não, o projeto de arquitetura.
Choca-me tudo o que seja ilegal, mas o que mais me choca é o que está legal e da forma como está. Falemos, então, do essencial, do projeto Castilho 203.
Castilho 203
Para entendermos melhor o projeto, partilho este vídeo de José Mateus e deixo-vos um link que apresenta uma memória descritiva e várias imagens do projeto.
Gostei bastante desta entrevista, por ser honesta e descontraída, com uma breve reflexão sobre o projeto de arquitetura do Castilho 203. De seguida vou citá-lo em algumas ideias essenciais que apresentou e acrescentar alguns comentários.
"Não há uma arquitetura que permaneça, pois é lhe dado um novo sentido que é completado e alterado."
É compreensível os arquitetos ficarem indignados quando alguém altera ou adultera projetos de arquitetura das suas autorias, no entanto, o próprio José Mateus sugere algo que vai de encontro ao que defendo: A Arquitetura é adaptável e flexível e não pertence, apenas, ao arquiteto, mas a todos nós!
Um(a) arquiteto(a) é como um(a) pai/mãe que concebem um filho. O filho terá sempre progenitores, com o tempo irá se adaptar e terá a sua vida.
"É uma localização que oferece aspetos fantásticos, nomeadamente, a relação que tem com o parque, com a cidade, com o castelo, com o horizonte e com Tejo.
É extraordinariamente generoso este local."
Sem dúvida nenhuma que o local é generoso. Eu compreendo bem que queiram tornar o Parque Eduardo VII no Central Park de Lisboa, mas isso não significa que exista qualquer relação com o parque. Só porque são vizinhos?
Ou a relação é, somente, a de poder contemplar paisagem no seu topo? Se pensarmos nesta lógica, toda a frente litoral de Quarteira e de Armação de Pera têm ótima relação com o mar.
"Um edifício que tem uma escala desajustada da cidade que o envolve. Pela sua linguagem desajusta-se, também, das cores e dos ritmos da cidade. É um edifício um pouco à parte da cidade."
Como eu concordo. O projeto de arquitetura, assinado pela ARX, assim ajudou. Um pouco à parte até parece-me pouco. Já que iam demolir um antigo erro urbanístico, um fracasso imobiliário de volumetria enorme, podiam pensar em criar um projeto mais ajustado à área envolvente (algo que requer reflexão, por envolver várias áreas científicas na construção da cidade).
"A Arquitetura é sempre polémica. Na Arquitetura nunca é fácil encontrar consensos. Mas tratam-se de habitações, casas. Casas são refúgios. São refúgios onde as pessoas devem encontrar conforto e bem-estar."
O cliente sempre procura conforto e bem-estar que o arquiteto não previu. Vários são os exemplos, onde os arquitetos não conseguem prever todas as necessidades dos futuros utilizadores dos projetos. É aceitável, daí a importância dos projetos poderem ser adaptados às reais necessidades das pessoas, para ser tornar mais consensual e não polémica (segundo regras e leis urbanísticas em vigor).
"Há um lado público, ou seja, um edifício que pertence à cidade. Que tem um lado público e que demonstra essa relação com a cidade. Uma ideia de civismo que pertence à cidade."
Um projeto imobiliário contraditório: primeiramente, é identificado por ter uma "escala desajustada e um pouco à parte da cidade", mas no final é apresentado por ter um "lado público", uma "ideia de civismo" e de "sentido de pertença à cidade". Considero que foi um discurso de um pai a falar do filho e não de um arquiteto a falar de Arquitetura.
Afinal, para que serve a Arquitetura?
Esta questão é o mote para transcrever, parcialmente, um artigo que escrevi em 2006 sobre alguns projetos de arquitetura da ARX, na sequência de um seminário de arquitetura na Universidade do Minho:
Publicado | 17 de outubro de 2006
[publicado sem o novo acordo ortográfico]
"AFINAL, PARA QUE SERVE A ARQUITECTURA?"
Decorreu recentemente, entre o dia 12 e 13 de Outubro em Guimarães, o seminário “Para que serve a Arquitectura?” organizado conjuntamente pela Dafne Editora e Departamento Autónomo de Arquitectura da Universidade do Minho.
Das oito apresentações realizadas quero realçar apenas duas: a do Arq. José António Bandeirinha e a do Arq. José Mateus da ARX Portugal.
A minha escolha reflecte-se não só pelas obras e ideias apresentadas por estes autores mas também pelas questões que foram levantadas durante os respectivos debates.
(...)
Relativamente à segunda apresentação, a do Arq. José Mateus da ARX Portugal, pela lista de projectos arquitectónicos que apresentou foi a intervenção que se tornou mais polémica não só para a mesa de debate, que foi bastante crítica em relação às propostas deste arquitecto, como para a plateia.
Passo a enumerar os projectos apresentados com assinatura da ARX Portugal:
- Museu Marítimo de Ílhavo;
- House in Ericeira;
- Centro Regional de Sangue – Porto;
- Biblioteca Pública de Ílhavo;
- Metropolis;
- Edifício IMOCOM (Lisboa), ainda em fase de proposta.
Resumindo cada um deles, de uma forma breve, de acordo com o que foi lançado para debate e de acordo com a minha opinião, todas as propostas apresentadas são, de facto, bastante controversas, sob o ponto vista da arquitectura em si, como sob o ponto vista pouco humano da arquitectura.
O que quero dizer com isto?
Passo a realçar alguns exemplos:
Museu Marítimo de Ílhavo
"Para resolver aquele problema do vandalismo construímos este muro alto."
O arquitecto mostra-nos uma série de fotos do antes e depois da intervenção e conforme decorre o discurso, parece-me que as palavras fogem-lhe para a verdade, e não dá conta que se está a tornar “arrogante”. E aqui, não estou a chamar-lhe arrogante, mas sim adjectivar a sua arquitectura de arrogante. Porquê? A certa altura, mostra-nos uma foto das traseiras do edifício vandalizada com graffitis e outras coisas mais, e diz-nos ele quando nos mostra a foto após a intervenção: como vêem para resolver aquele problema do vandalismo construímos este muro alto, ao mesmo tempo serve de tampão para as más construções arredores.
Casa na Ericeira
"O projecto resume-se ao virar de costas da casa à aldeia e apenas
se abre para contemplar a paisagem de campos vinícolas sem fim."
Uma casa de sonho com uma paisagem de sonho e que é afinal uma realidade, pois esta casa existe mesmo! O projecto resume-se ao virar de costas da casa à aldeia e apenas se abre para contemplar a paisagem de campos vinícolas sem fim. O próprio arquitecto afirma que projectou a pensar nisso. Área nobres (sala de estar, o quarto principal) com enormes janelas e varandas para contemplar paisagem, enquanto que as restantes áreas da habitação estão do outro lado (na traseira), viradas para a aldeia. Uma arquitectura que vive por si e em si. Será egocentrismo do arquitecto?
Centro Regional do Sangue do Porto
"Construiu um muro alto em redor e plantou uma vinha e
plantas de cor vermelha."
Novamente a questão do que é bonito e do que é feio se levantou aqui. A certa altura o Arq. José Mateus mostra-nos algumas fotos anteriores à intervenção. Todas elas a realçar o caracter do bairro degradado dos arredores da área de intervenção. Apelidou mesmo de área feia. O que fez ele para resolver e minimizar o impacto do edifício projectado por si na área envolvente? Construiu um muro alto em redor e plantou uma vinha e plantas de cor vermelha (para dar ideia de sangue) e sei lá mais o quê para minimizar o impacto da envolvente no seu edifício. Não devíamos pensar ao contrário? Não será o novo edifício a criar o impacto?
Biblioteca Pública de Ílhavo
"Até desenhou uma janela virada, não para contemplar paisagem
(que é "feia"), mas para a própria parede branca do seu edifício."
Novamente o "tentar esconder a realidade" por parte do arquitecto se verifica neste projecto. Neste, até desenhou uma janela virada não para contemplar paisagem (que é "feia") mas para a própria parede branca do seu edifício. Como a paisagem não é atraente com este desenho poderemos atingir um reflexo de luz para iluminar a sala de leitura (afirmou no Seminário). Para mim, se me encontrasse naquela sala, ao concentrar o meu olhar no exterior, acho que "ficava com uma branca" e abandonava a sala. E novamente encontrou como solução a construção de muros altos para resolver a questão dá "má urbanização" existente nos arredores.
Posto isto, pergunto se é para isto que serve a Arquitectura?
Ler artigo na íntegra aqui.
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Rogério Madeira
Geógrafo
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