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De norte a sul

Uma breve abordagem geográfica sobre a desigualdade territorial dos resultados do combate à pandemia

No último mês li alguns artigos de opinião sobre a situação atual do combate à pandemia.

À conversa com amigos(as), de norte a sul, acabei por entender que existem distintas interpretações dos dados, segundo o contexto regional onde vivem e na comunidade que se relacionam.

A discrepância de opiniões foi agravada com a reportagem da TVI, “Covid-19: Norte de Portugal mais castigado” (13 de abril) que tentou trazer para a discussão pública as assimetrias regionais existentes, identificando caraterísticas à população nortenha, de forma errada e infeliz, como disse José Alberto Carvalho.

Nesse dia o Norte concentrava 60% dos casos confirmados e 57% do número total de óbitos.

Porque tinha o Norte estes resultados?


Hoje (02.07.2020), o Norte concentra 41% dos casos e 52% dos óbitos.

Esta redução deve-se ao aumento do número de casos registados em Lisboa (que detém hoje 46% e 30%) e a sul do país, após o fim do estado de emergência (2 de maio).

Porque está isto acontecer?

Partilho a entrevista a Jaime Nina. Segundo ele:


“Este número de casos novos que parece um aumento muito grande é, em parte, inflacionado porque estão a ser testadas muitas pessoas.

Para ajudar a entender os atuais dados, difundidos pela Direção-Geral de Saúde (DGS), irei retratar Portugal continental, segundo alguns indicadores que nos ajudam a caraterizar o território e a sua população, para efeitos de enquadramento.

Agrupo-os nos seguintes temas: povoamento, demografia, atividades e redes.


1. Povoamento


É do senso comum que o povoamento português é fortemente marcado por duas dicotomias: uma norte-sul e outra litoral-interior. Grande parte da nossa população reside na faixa litoral que vai de Setúbal ao alto Minho. Com um povoamento mais denso ao longo da costa e difuso fora dos principais centros urbanos.


“As prospetivas em termos de evoluções demográficas e económicas para 2020 fazem emergir os riscos de uma fratura socioterritorial entre um Portugal em «alta tensão» e um Portugal «sonolento»” [1].

Concentração da população no litoral português. [2]

Fonte: INE.


O sistema urbano nacional é policêntrico, assente nas duas Áreas Metropolitanas (AM), Lisboa e Porto, num pequeno número de cidades médias e pequenos centros.


População residente em lugares com 2 mil ou mais habitantes. [2]

Fonte: INE, Retrato Territorial de Portugal 2011.



2. Demografia


Como vimos, grande parte da nossa população vive na faixa litoral e nas três áreas das Administrações Regionais de Saúde (ARS) – Norte, Lisboa e Centro.


População total, por ARS.

Fonte: www.sns.gov.pt, 2016.






Densidade populacional, por freguesia.

[3] Fonte: INE, 2001.


Em 2019, os municípios [4]:

  • Amadora (7692)

  • Odivelas (6054)

  • Porto (5213)

  • Lisboa (5081)

  • Oeiras (5081) apresentavam a maior densidade populacional (hab./km2).

ARS

Lisboa (312) e Norte (168) hab/km2.

Áreas metropolitanas

Lisboa (959) e Porto (844) hab/km2.



População residente, por grupo etário, segundo a ARS.

Fonte: Dados INE (NUTS 2013), agrupados por ARS.



População residente com mais de 65 anos, por freguesia. [3]

Fonte: INE, 2001.


Uma boa parte do território apresenta uma percentagem de população com mais de 65 anos, superior a 20%.


Ao analisar dados do ine.pt, calculando a percentagem de pessoas com + 65 anos, por ARS, a região mais envelhecida é o Alentejo (25%). De seguida a região Centro (22%), Lisboa (20%), Algarve (19%) e Norte (17%).

Curiosamente, a região Norte é a menos envelhecida e apresenta a maior (68%) percentagem de população em idade ativa.


3. Atividades


Neste tema, importa conhecer o peso de cada setor de atividade e a população empregada, segundo o setor, por região.


População empregada total, por setor de atividade económica, em 2011.

Fonte de dados: INE.



Analisando o número de população empregada por setores de atividade económica, ficamos a saber que o Norte (36%) e Centro (30%) do país são as regiões com maior número de pessoas a trabalhar no setor secundário, que dificilmente pode executar o seu trabalho remotamente.


Percentagem de população empregada no setor secundário, por região, em 2011.

Fonte de dados: INE.


Da população total empregada no sector secundário, 16% residem no Norte, 8% no Centro e apenas 6% em Lisboa.


Lisboa tem 83% da sua população empregada no setor terciário.

Quem trabalha neste setor, terá maiores possibilidades de trabalhar remotamente.


4. Redes


O mundo está ligado por um sistema global de transportes.

Portugal registou um aumento no número de ligações internacionais e de passageiros movimentados nos seus aeroportos e portos de cruzeiros. Quando a Europa é afetada pelo vírus, logo a seguir à Ásia, é justificada pelos fluxos decorrentes desta rede globalizada.

As figuras seguintes ilustram a conetividade existente na tríade Ásia – Europa – EUA.

The Global Transportation System e Mapa de voos Internacionais.

Fonte: globaia.org e google.pt in 19/06/2020.


Podes ver os voos atuais no Flightradar24: Live Flight Tracker.

Tráfego de passageiros nos principais aeroportos.

Fonte: INE e PORDATA (atualização 11.11.2019).


Os primeiros casos em Portugal foram importados do Norte de Itália e de Espanha. Como sabemos, os aeroportos de Lisboa, Porto e Faro são os principais do país. Lisboa, pela sua localização, é um nó na rede internacional, pois serve para voos de ligação para outros países. Ao mesmo tempo, o seu porto de cruzeiros, desempenha hoje um importante papel nas rotas internacionais dos navios de cruzeiro.

Com a reabertura das ligações internacionais, estas regiões estarão mais suscetíveis a surtos da pandemia.

De seguida, como exemplo, pode ver uma simulação computorizada de uma pandemia global, com origem na Grécia. A propagação ocorre na rede mundial de transporte aéreo de mais de 4000 aeroportos e 25.000 ligações diretas.

Para além do enquadramento na rede internacional, teremos que conhecer a rede nacional de transportes e de mobilidade. Apenas irei destacar alguns exemplos de fluxos que demonstram a dinâmica da mobilidade pendular no país.


“A oportunidade de emprego, em conjunto com o ensino, são a base para a movimentação diária de residentes para fora da sua área de residência para trabalhar.” [2]

Mobilidade pendular e fluxos relativos de interação da população empregada ou estudante. [2]

Fonte: INE. (elaboração UMVI).


Este mapa mostra-nos um sistema de fluxos mais complexo nos centros urbanos que rodeiam as AM de Lisboa e do Porto. Os municípios com maior interação funcional são Sines e Santiago do Cacém (13,5%), Porto e Matosinhos (13,3%), Porto e Vila Nova de Gaia (12,4%), Porto e Gondomar (12,3%), Lisboa e Loures (11,3%) e Lisboa e Sintra (11%). [2]






Centralidade e espaços de relacionamento - Redes de proximidade. [3]

Fonte: INE, Censos 2001, Inventário Municipal, 1998. Páginas amarelas, 2001.








Centralidade e espaços de relacionamento - Redes de hierarquia superior. [3]

Fonte: INE, Censos 2001, Inventário Municipal, 1998. Páginas amarelas, 2001.





Se analisarmos os fluxos para um serviço de proximidade (oculista) e para um serviço especializado (hospital), constatamos que a região Norte está muito mais interligada, porque tem centros urbanos de média dimensão mais competitivos e que oferecem esses serviços e equipamentos. A norte as pessoas acabam por se deslocar mais, para trabalhar e ou adquirir um bem/serviço.


Se o homem é o único agente portador do vírus, logo transportador, este circulará segundo as redes de mobilidade humana, daí a preocupação e cuidado que devemos ter nos transportes públicos, nos principais centros urbanos.



E muito mais...


Para um retrato geográfico mais detalhado, teríamos que abordar outros indicadores, tais como: saúde, habitação, socioeconómicos, uso e ocupação do solo, culturais e até espirituais, onde as relações de vivência (ou sobrevivência) em comunidade e de família são bem distintas nas várias regiões.


De norte a sul, somos gente diferente.


Coletivamente nos relacionamos de forma diferente, porque somos gente diferente em meios diferentes. Mudamos ao longo dos anos e de região para região.

A administração política (regional e/ou local) também é diferente de Norte a Sul.

Somos governados por gente diferente (uns competentes, outros nem tanto).

Ao mesmo tempo, NÓS próprios, somos gente diferente.

Apesar de existir leis e regras para todos, por vezes estas não são entendidas e aceites por todos de igual forma. E isso ajuda a justificar muitas vezes resultados, bons ou menos bons.

Para mim, viver em sociedade bastava um velho princípio:


“A tua liberdade começa, quando termina a minha!”

Ambas as liberdades podem conviver, até quando prevalecer o bom senso e respeito.

Para finalizar, gostaria de citar António Barreto:


“Os portugueses são hoje muito diferentes do que eram há trinta anos. Nascem em melhores condições, mas nascem menos. Vivem mais tempo. Têm famílias mais pequenas. Os idosos vivem cada vez mais sós.” [5]

Preocupa-me bastante por aqueles que sempre cuidaram de nós.

Infelizmente, já não tenho os meus 4 avós, partiram cedo...

Mas tenho a enorme felicidade de ter os meus pais, com saúde, reformados e em sua casa.

Tudo farei para partirem no tempo deles...

O mais tarde possível!



Sustenta o sustentável 🍀

Rogério Madeira

Geógrafo

[1] Ferrão (2002), citado in DOMINGUES, Álvaro (Coord.), Cidade e Democracia: 30 anos de transformação urbana em Portugal, Argumentum, 2006, p. 80;

[3] DOMINGUES, Álvaro (Coord.), Cidade e Democracia: 30 anos de transformação urbana em Portugal, Argumentum, 2006, p. 83, 85 e 88;

[5] BARRETO, António e PONTES, Joana, Portugal, um retrato social, Público/RTP, 2007;

UMVI - Unidade de Missão para a Valorização do Interior.

Publicado originalmente na Engenho e Arte, em 02.07.2020.

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