O espaço e a organização política do espaço expressam as relações sociais
mas também influem nelas.
Henri Lefebvre
A rubrica livro do mês regressa ao Georden, desta vez com um dos nomes contemporâneos mais famosos das últimas décadas: Edward William Soja.
Novaiorquino nascido em 1941 (e não “californiano nascido na década de 1950, como aqui se lê), Soja cresceu no Bronx e a sua vivência da rua e do sentido colectivo, a brincar e jogar com os amigos, está na base da sua primeira sensibilidade para a leitura crítica do espaço. O seu espaço vital, diz, resumia-se a uma rua, pelo que um quarteirão mais adiante era considerado espaço estranho. Também o seu gosto por mapas apurou a apetência pela Geografia. O seu primeiro trabalho, sobre o Quénia, levou-o a explorar as realidades coloniais e a interessar-se por outras áreas do saber como a História, a Antropologia, a Arqueologia…
A principal marca de Soja foi e continua a ser – pasmem-se os Geógrafos e analistas das ciências sociais – a luta pela reivindicação da espacialidade como elemento central para a abordagem e leitura da realidade das sociedades humanas.
A sua obra “Geografias Pós-modernas“, de 1989, livro cuja tradução portuguesa disponível continua a ser, nada estranhamente, brasileira, tem, aliás, como subtítulo “A Reafirmação do Espaço na Teoria Social Crítica” (em verdade, como se perceberá pela pequena bibliografia em anexo, na quarta parte deste artigo, essa é, tanto quanto sabemos, a sua única obra em Português.) e é dele que extraímos as passagens abaixo.
(duas edições de “Postmodern Geographies”, de Edward William Soja)
Trata-se, obviamente, de uma reivindicação natural do ofício. Mas porquê, então, a pertinência e novidade introduzida por Soja?
A primeira resposta reside exactamente no espanto que esta assunção representa: será que os geógrafos não tomam o espaço como objecto principal nos seus estudos?
Segundo ele, um veemente não:
“A visão do espaço essencialmente como elemento físico influenciou profundamente todas as formas de análise espacial, seja ela filosófica, teórica ou empírica, aplicada ao movimento dos corpos celestes ou à história e à paisagem da sociedade humana. Também tendeu a imbuir tudo o que é espacial num persistente sentido essencialista e físico, de uma aura de objectividade, inevitabilidade e reificação.
Sob esta forma física abstracta e geral, o espaço foi conceptualmente incorporado na análise materialista da história e da sociedade de uma forma que interfere com a interpretação da organização espacial humana como produto social, que é o primeiro passo fundamental para entender a dialéctica sócio-espacial. O espaço entendido como contexto físico gerou um grande interesse filosófico e longas discussões sobre as suas propriedades absolutas e relativas (um debate longo que é anterior a Leibniz), as suas características como “contentor” ambiental da vida humana, a sua geometria objectivável, e as suas essências fenomenológicas. Mas este espaço físico foi uma base epistemológica desviantepara analisar o significado subjectivo e concreto da espacialidade humana. O espaço em si pode estar fisicamente dado, mas a organização e o significado do espaço é um produto da experiência, da transformação e da dinâmica social.“
Ou seja, cabe distinguir os conceitos de “espaço“, enquanto “cenário” (ou nem isso), com as suas características físicas, e “espacialidade“, termo empregue para designar o espaço socialmente construído, percebido e vivido.
O espaço produzido socialmente é uma estrutura produzida comparável a outras construções sociais resultantes da transformação das condições inerentes a estar vivo, tal como a história humana representa uma transformação social do tempo. De igual maneira, Lefebvre distingue entre a Natureza como contexto dado e o que pode chamar-se “segunda Natureza”, a espacialidade transformada e socialmente concretizada surgida da aplicação do trabalho humano intencional. É esta segunda Natureza que se torna sujeito geográfico e objecto da análise materialista histórica, de uma interpretação materialista da espacialidade.
O espaço não é um objecto científico separado da ideologia e da política: sempre foi político e estratégico. Se o espaço tem ar neutro e de indiferença para com o que ele contém e parece assim como puramente formal, o epítome da abstracção racional, é justamente porque foi ocupado e utilizado, e já foi alvo de processos passados cujas pegadas nem sempre são evidentes na paisagem. O espaço foi conformado e moldado a partir de elementos naturais e históricos, mas ele foi um processo político. O espaço é político e ideológico. É um produto literalmente carregado de ideologias.
Henri Lefebvre, Reflexões Sobre a Política do Espaço, 1976
Talvez esta forma de encarar o espaço seja nova, mas a resposta é novamente negativa, como veremos. Mas continuemos com Soja.
A noção-chave que Lefebvre introduz na frase em epígrafe assume-se como a premissa fundamental da dialéctica sócio-espacial: que as relações espaciais e sociais são dialecticamente interactivas, interdependentes; que as relações sociais de produção ao mesmo tempo que conformam o espaço, são condicionadas por este (pelo menos enquanto tivermos uma visão do espaço organizado como socialmente construído).
Dentro de um marco regional em vez de urbano, Ernest Mandel desenvolveu ideias muito parecidas. No seu exame das desigualdades regionais em capitalismo, Mandel afirmou que “o desenvolvimento desigual entre regiões e nações é a essência mesma do capitalismo, ao mesmo nível que a exploração do trabalho pelo capital”. Ao não subordinar a estrutura espacial do desenvolvimento desigual às classes sociais mas, sim, colocando-a “ao mesmo nível”, Mandel identificou uma problemática espacial na escala regional e nacional que se assemelhava muito à interpretação de Lefebvre da espacialidade urbana, ao ponto de sugerir o surgimento de uma poderosa força revolucionária a emergir das desigualdades espaciais que claramente via como necessárias para a acumulação capitalista. No seu trabalho principal, Late Capitalism (1975), Mandel centrava-se na importância histórica crucial do desenvolvimento geográfico desigual no processo do capitalismo. Ao fazê-lo, apresentou uma das análises marxistas mais sistemáticas e rigorosas da economia política do desenvolvimento regional e internacional jamais escritas.”
Inspirado pelas leituras de Henri Lefebvre, que já trouxemos aqui com “O Direito À Cidade“, de Focault e outros, Edward Soja desconstrói o conceito e procura, dentro do próprio marxismo, enquanto atitude e prática críticas e emancipadoras, as razões para a espacialidade ter sido relegada para o pátio das traseiras epistemológico.
Sem nos alongarmos em grandes explicações, as razões por ele encontradas podem resumir-se a três:
1 – A aparição tardia da obra de Marx “Grundrisse”
Esta obra, a mais eminentemente geográfica do pensador alemão, só começou a difundir-se bem depois da Guerra de 1939-45. “Aliás, como hoje sabemos, Marx nunca concluiu os seus planos para os volumes seguintes a”O Capital”, que deviam abordar o comércio mundial e a expansão geográfica do capitalismo, cujo possível conteúdo só ficou insinuado posteriormente nos “Grundrisse”. Na ausência destas fontes, a ênfase foi colocada na teorização do sistema fechado, sobretudo aespacial, dos volumes publicados d”O Capital” (…) Graças às contribuições de Bukarine, Lenine, Luxemburgo, Trotsky e outros, a teoria do imperialismo e as conceptualizações associadas aos processos de desenvolvimento desigual tornaram-se no principal contexto da análise geográfico dentro do marxismo ocidental. Havia uma problemática espacial implícita nessas teorizações do imperialismo, mas ficavam-se no mero reconhecimento de uma limitação física final para a expansão geográfica do capitalismo.
2 – As tradições anti-espaciais no marxismo ocidental.
Em muitos sentidos, Hegel e o hegelianismo transmitiam uma ontologia poderosa e uma fenomenologia espacializada que reificava e fetichizava o espaço sob a forma física, o locus e o meio da razão completa. (…) O tempo ficava subordinado ao espaço e a própria história era dirigida por um “espírito” territorial, o Estado. O anti-hegelianismo de Marx não se limitava à crítica materialista da do idealismo. Era também uma tentativa de devolver a primazia à historicidade – a temporalidade revolucionária – sobre o espírito da espacialidade. Deste projecto emergiu uma sensibilidade poderosa e uma resistência à afirmação do espaço enquanto determinante histórico e social.
(…)
Menção à parte merece o carácter anti-espacial do dogmatismo marxista saído da Segunda Internacional e que se consolidou sob o estalinismo, tendo sido as questões espaciais tratadas dentro de uma abordagem de um estéril reducionismo económico.
3 – As condições mutáveis da exploração capitalista.
Como as fórmulas da composição orgânica do capital e da taxa de lucro, o seu derivado assume a visão de um sistema fechado das relações de produção capitalistas, desprovidas de diferenciação e desigualdade geográficas significativas. Além disso, dada a urbanização massiva associada à industrialização em expansão, a reprodução da força de trabalho era um assunto muito menos crucial que o processo de exploração directa através de um sistema de salários de subsistência e a dominação do capital sobre o trabalho no lugar da produção. Para a extracção da mais-valia absoluta, a organização social do tempo parecia ter mais importância que a organização social do espaço.
No capitalismo contemporâneo, a exploração do tempo de trabalho continua a ser a fonte principal da mais-valia absoluta mas com uns limites crescentes que surgem da redução do horário de trabalho, dos níveis de salário mínimo, dos acordos laborais e de outras vitórias da organização da classe trabalhadora e dos movimentos sociais urbanos. Para continuar a conseguir essa mais-valia, o capitalismo viu-se forçado a investir na tecnologia, nas modificações na composição orgânica do capital, a reconhecer o papel crescentemente dominante do Estado, e às transferências líquidas do excedente associadas à penetração de capital em esferas de produção não geradoras de lucro (internamente, através da intensificação, bem como externamente, através do desenvolvimento desigual e a “extensificação” geográfica a regiões menos ou nada industrializadas de todo o mundo). (Continua)
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